sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

A VIRTUOSA SAGA DO GURI DE MERDA




A VIRTUOSA SAGA DO GURI DE MERDA

Guri: substantivo masculino originário da cultura gaúcha que nomina jovem de tenra idade até a fase adulta e, dependendo do humor, dali em diante. Seu emprego é dúbio, pois tanto pode ser entendido como um atributo positivo, quanto negativo, pejorativo, guri/personagem ao qual me reporto a seguir.

Pai: desconhecido

Mãe: ausente, não se sabe onde anda, do tipo “não to nem aí”.

Mãe de fato, mas não de direito: a avó, por parte da mãe, é claro.

Amiguinhos: a trupe da rua reunida tendo como maior diversão quebrar placas de sinalização, estourar lâmpadas e pichar muros com qualquer coisa.

Escola: posição indefinida (não de vagabundagem) na vida escolar, provavelmente situada entre a 3ª e a 5ª série do ensino fundamental.

Lazer preferido: derrubar latas de lixo nas vias públicas, matar passarinhos e todos os tipos de bichos vivos ao alcance, com especial foco nos “não domésticos”.

Vivendo com a avó, nas efêmeras passagens em casa, logo descobriu que ela guardava algum dinheiro da pensão vitalícia que recebia todo santo mês na condição de “filha solteira de general de brigada”, regalito previdenciário divino que só existe no Brasil e alguns poucos países hiper-desenvolvidos, aqueles nos quais não há miséria, pobreza, analfabetismo, entre outras mazelas nacionais.

Certo dia afanou um bocado do cofrinho da vovó e atribuiu o furto à empregada que, por sua vez, foi pro olho da rua amargar o desemprego total, já que fruía de um bico precário com a qual alimentava mais três crianças num barraco distante. Não é preciso dizer que nosso guri e sua família são brancos, e a empregada e sua família são negros.

Seu primeiro “investimento” na vida foi um lote de papelotes que generosamente distribuiu entre os amiguinhos, virando líder instantâneo dos mesmos. A trupe passou a infernizar todo o bairro dia e noite, cena comum na maioria das cidades já de longa data. O “som” e o ronco dos motores emolduravam a cena.

Aos 15 aninhos estuprou uma menina de 11 aninhos que, por azar, cruzou diante de seus olhos no carnaval. Oh maldito carnaval !!! Ato contínuo, consolidou ainda mais sua liderança sobre a trupe do bairro, cada vez mais mergulhada em drogas, arruaças e maldades de toda sorte. E, em meio a isso tudo, até freqüentava a escola dia sim, dia não, dependendo do humor e das ressacas.

Aos 16 aninhos, dirigindo um carro roubado para ir à balada, atropelou em altíssima velocidade uma família inteira que aguardava paciente em um ponto de ônibus o embarque que não chegava. Embarcaram para o céu sem aviso prévio. Restaram em terra dois sobreviventes: um menino e uma menina órfãos de pai, mãe e tia, também morta no acidente.

Liberado pela polícia um dia depois da chacina automobilística, e recomposto da bebedeira, teve que “prestar serviços comunitários” para os quais se safou, pois não havia nada a fazer objetivamente na comunidade, carente de ONGs filantrópicas, além de não haver quem cobraria dele a pena do “trabalho comunitário”.

Saindo impune com a morte de três pessoas, nosso guri mui esperto logo aprendeu que, com algum “jeitinho” maneiro, boas conexões em alguns “pontos sociais”, poderia subir na vida caso a sorte viesse a sorrir para ele.

Depois de longa e imprecisa jornada escolar, virtualmente conclusa, nosso guri convenceu a angélica vovó a lhe emprestar uma grana com a qual compraria um gabarito de vestibular no qual passaria, certamente, entre os primeiros lugares.

Nosso guri, agora universitário cursando direito em uma instituição pública e gratuita, pouco freqüentava salas de aula, a ponto de um belo dia, ao conversar com um sujeito mais idoso no bar da faculdade, descobriu que ele era, em verdade, um dos seus desconhecidos professores. A descoberta lhe gerou algumas folgas a mais, para sua satisfação intelectual e infinito gozo carnal.

Idas e vindas, jeitinho aqui, favor ali, finalmente bota a mão no canudo por força da ajuda que recebeu de alguns professores, decididos a se livrar dele o quanto antes, sob o mot “abrir uma vaga para alguém mais interessado nos estudos”.

Com o diploma de direito na mão, mais uma vez emprestou uma graninha da angélica vovó, com a qual adquiriu um gabarito da prova da OAB, porta que lhe abriria uma brilhante carreira jurídica, “sedutora” em todos os sentidos.

Na medida em que se inteirava do reino jurídico, nosso esperto guri já com mais de 20 anos, decorava algum juridiquês com o qual conseguia seduzir de meritis não só seus pares, jurisconsultos, meirinhos e escrivães, mas até mesmo atrair alguns incautos clientes, causas que, invariavelmente, perdia para a outra parte.

Descobriu que a língua é um instrumento de sedução e dominação sutil e muito eficiente, tanto quanto o dinheiro, onde reside o periculum in mora.

Fumus boni júris, contra legem, data vênia, habeas corpus, inaudita altera parts, entre incontáveis expressões oriundas de insondáveis pergaminhos seculares, todos eivados de alta circunspecção, impoluta seriedade, no mais elevado rito formal e de elevada prosopopéia, meticulosamente garimpada no enferrujado cânone greco-romano.

Suas sentenças, mais se assemelhavam a obras primas da literatura clássica, invariavelmente permeadas por expressões que se valiam do mais elevado vernáculo da língua portuguesa, tais como estas:

  
Chegando aos 30 anos de idade, nosso guri já tinha amealhado um sem numero de contatos muito quentes no judiciário por meio de sua onipresença nas festinhas da corte, baladas regadas a todo tipo de comes e bebes insuspeitos, todos de origem comprovada e com selinho de garantia. Nada de canapé mofado e uísque do Paraguai, coisa da “escumalha” social que tanto odiava.


O “pulo do gato” viria quando caiu na graça da filha de um desembargador, escada que lhe deu acesso rápido ao próprio, e com ele aprendeu o caminho mais curto para chegar a juiz de direito, renda fixa muito boa, mas tendo que abrir mão de certas liberdades, embora conservando seu modo de vida bem disfarçado. Fazer o quê? Alguma coisa teria que ceder em troca das regalias daquele “ingrato ofício”.

Concurso aberto, com sólidos “contatos de dentro”, obtidos com o seu virtual sogro, passaria com nota de distinção dentre um seleto grupo de dois concorrentes. Não passou em primeiro lugar, mas em 2º e, assim que se abriu uma vaga no interior, lá estava nosso recém nomeado juiz finalmente no exercício do cargo.

Cidadezinha de interior, mais parecida com algum bairro de periferia de grande cidade, na qual manda o triunvirato Prefeito, padre e o juiz, ambiente no qual os vereadores locais são menos “valiosos” que os despachantes de trânsito.

Entre todo tipo de processos, indenizações, sopapos e “crimes menores”, nosso guri sentenciou outro guri, este com seus 15 aninhos, condenando-o pela morte de cinco pessoas em acidente de trânsito, bêbado ao volante, a alguns “trabalhos voluntários”, assim como ele próprio havia sido sentenciado vinte anos antes. Como de praxe, nada aconteceu com o cumprimento da pena por parte do nosso guri de 15 anos, assassino (bêbado) de cinco pessoas.

Logo depois, sentenciou um sujeito por difamação que teria feito a um empresário local envolvido com notórias falcatruas na Prefeitura comprando emendas de zoneamento urbano de vereadores, a pagar R$ 100.000,00, cem mil reais, isto mesmo. O empresário era presidente do sindicato das empresas da construção civil.
 
Temeroso que uma apelação lhe impingisse pena ainda maior, o denunciante do empresário, cidadão honesto e trabalhador, SMJ, teve que vender sua propriedade que havia adquirido com muito suor e trabalho para pagar à vítima sua dívida pecuniária pela condenação. Depois de paga, o empresário dividiu com nosso guri a quantia e ambos ficaram ainda mais amigos, a partir de então parceiros diários de tênis no high-club social da cidade.

Banhos de piscina e festinhas sociais também viraram rotina na adorável e mansa vidinha do nosso guri, sempre acompanhado de sua cortês e vigilante esposa, aquela filha do desembargador, agora já aposentado.

Capítulo à parte, sua esposa era nobre contribuinte em todas as quermesses e atividades filantrópicas em toda a região, sempre portando os últimos cortes Armani, ou outras grifes importadas, espertamente compradas nos saldões promocionais, um vício insanável.


Também fazia parte do fausto “marketing social” da nossa dupla high socieity, participar de rotineiros cruzeiros, alguns dos quais dançando “Amada amante”, na voz de Roberto Carlos do qual, sempre recebia uma perfumada rosa vermelha.

Conexões granjeadas no uísque depois dos jogos de tênis, colocaram nosso guri em contato direto com o partido do então governador. Logo seria nomeado para desembargador em troca do compromisso de procrastinar todas as ações judiciais que implicavam possíveis penas a sua gangue. Não eram poucas.

O governador e a cúpula do seu partido, por sua vez, consolidaram com esse “golpe de mestre”, a maioria na cúpula do Judiciário Estadual, cenário que proporcionaria a ele a maior tranqüilidade para tocar adiante o seu probo governo.

Da mesma forma, no Legislativo, compondo folgada maioria por obra de nomeações no 1º, 2º e 3º escalões, o governador jamais enfrentaria alguma CPI ao longo da sua dinâmica e “revolucionária gestão”. No aperto, chamava algum desembargador que havia nomeado para dar um puxão de orelha no deputado insubmisso.

A doce vovó do nosso guri, a essas alturas já com 90 anos, continuou recebendo sua pensão vitalícia de “filha solteira de general”.

Nosso guri, assassino de três pessoas, bêbado ao volante, embora nunca tenha estudado qualquer coisa, tenha comprado três diplomas para passar no vestibular, na faculdade e na OAB, logo se aposentou como desembargador no topo da carreira, e hoje vive bem folgado numa vitoriana mansão no litoral catarinense, encravada numa encosta de morro íngreme em meio à Mata Atlântica, com vista paradisíaca, rodeado de bichinhos selvagens, um privilégio só para poucos deuses.

Agora aos 55 anos de idade, receberá todo mês modestos R$ 40.000,00 limpinhos. Pouco, é verdade, para sustentar tamanhos compromissos que o cercam, pelo resto de sua vida, cuja longevidade é estimada em cerca de 90 anos, como sua vovó.

Detalhe: todo ano compra uma Mercedes zerinho e freqüenta o cruzeiro do Roberto.

E para “passar o tempo, toda tarde, chova faça sol, joga bingo e dominó na praça central da cidade, quase incógnito misturado ao “povo” que tanto ama e para o qual tantos serviços prestou durante sua intensa e profícua vida profissional.

E assim termina “a virtuosa saga do guri de merda”.

Florianópolis, fevereiro de 2012
Gert Schinke

Obs: Todos os personagens dessa história são rigorosamente fictícios e não estabelecem qualquer relação com a vida social brasileira. Trata-se, pois, de um mero conto de ficção.